
Apesar de muitas unidades de atendimento brasileiras usarem sistemas de informação e saúde, “cada hospital é uma ilha”. Isso porque existe um problema clássico de interoperabilidade de dados em saúde: os profissionais envolvidos nos cuidados da população têm visões parciais das condições e dos históricos de pacientes que dão entrada em ambulatórios, centros de saúde, clínicas e postos. Nem mesmo os pacientes têm controle ou podem gerenciar seus dados armazenados pelos provedores de saúde.
Em entrevista ao Observatório Nacional de Blockchain, o professor Cristiano André da Costa, do Programa de Pós-Graduação em Computação Aplicada (PPGCA) e do SOFTWARELAB (Núcleo de Excelência em Inovação de Software da Unisinos) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), trouxe um panorama de como a tecnologia blockchain tem sido usada na integração de prontuários eletrônicos e para outras aplicações em healthcare, garantindo transparência e rastreabilidade de dados.
Em 2018, pesquisadores da Unisinos desenvolveram um modelo de arquitetura para suportar um Registro Pessoal de Saúde (Personal Health Records) distribuído, no qual pacientes poderiam manter seu histórico em uma perspectiva unificada, a partir de qualquer dispositivo e em qualquer lugar. Após esta pesquisa, foram exploradas outras vertentes possíveis para uso de blockchain, afinal, a tecnologia de registro distribuído traz aspectos de privacidade que têm enorme potencial para aplicações na área da saúde.
Os pesquisadores testaram, então, o sistema Minha Saúde Digital, com a participação de vários hospitais de Porto Alegre e região metropolitana.
“O foco dos testes foi a interoperabilidade dos dados relacionados à COVID-19, durante a pandemia. Circulavam nesse sistema as fichas de notificação de Síndromes Respiratórias Agudas Graves (SRAGs), além de dados básicos de saúde da população em atendimento”, explica o professor Cristiano.
Por exemplo, cada vez que um paciente dava entrada em um hospital, ele poderia autorizar os outros hospitais a terem acesso às informações pregressas. Então, se futuramente ele fosse acolhido em um pronto-socorro ou qualquer unidade hospitalar, o histórico estaria disponível.
O Sistema Único de Saúde (SUS) usa, atualmente, algumas aplicações em blockchain que envolvem Registro Eletrônico de Dados de Saúde (Electronic Health Records). O Brasil tem focado na atenção primária, que é o DNA do SUS, para que cada paciente seja reconhecido e acompanhado integralmente no sistema. Um dos desafios é a padronização de cadastro da população, que o Ministério da Saúde tentou, recentemente, resolver com a proposta do Documento Nacional de Identificação (DNI), implementado pela Lei 13.444/2017 e regulamentado no Decreto 9.278/2018.
Segundo o professor, os possíveis cenários de expansão da tecnologia no SUS incluem a simplificação, o controle e a transparência dos prontuários eletrônicos, além de soluções para a gestão de medicamentos e prescrições. Idealmente, o paciente poderia autorizar, por meio de sua carteira digital ou do aplicativo do SUS, que hospitais e unidades de saúde acessassem o histórico médico. Com isso, as informações passariam a circular de forma integrada, possibilitando um atendimento mais eficiente e contínuo em cada nova consulta.
Wearables
Uma evolução dessa troca de informações ”paciente-sistema” se materializa, atualmente, no desenvolvimento de wearables, baseados em Internet das Coisas (IoT). Pesquisadores da Unisinos estão testando esses cenários – de quase ficção científica – em que pessoas com relógios e dispositivos de monitoramento individuais enviam dados ao sistema de saúde de dentro de casa e em tempo real. Melhor ainda, esses dados estão sendo compartilhados com segurança e privacidade, garantidas pela blockchain e de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Por exemplo, os cientistas montaram um protocolo junto à fisiatria do Hospital das Clínicas de Porto Alegre para coletar informações de wearables em fase de testes com pacientes. São usados dispositivos encontrados no mercado, como monitores multiparamétricos e fitas de frequência cardíaca, que fornecem dados relevantes sobre a saúde do paciente.
“Ainda não há conclusões deste trabalho, mas os resultados parciais mostraram que dispositivos relativamente baratos, populares para uso no esporte e bem-estar, conseguem monitorar e enviar dados de forma bastante interessante”, afirma o professor Cristiano.
Esse tipo de serviço tende a se tornar cada vez mais relevante para hospitais e clínicas, por oferecer comodidade ao paciente. A pessoa prefere estar em casa, em um ambiente confortável, e ser acompanhada à distância, sem precisar visitar o hospital. É uma forma de saber se está tudo bem (ou não) sendo acompanhado remotamente.
Aliás, esse olhar dos pesquisadores para a “transição do cuidado”, que envolve monitoramento e atendimento domiciliar, é outra vertente de desenvolvimento científico. Se há desafios para tratar os dados de pacientes internados, há outros ainda maiores quando essas pessoas recebem alta hospitalar e precisam de acompanhamento.
“Antigamente, o paciente saía do hospital e continuava sendo atendido na clínica. Hoje, o paciente sai do hospital e pode continuar sendo atendido em casa”, explica o pesquisador. Isso pode contribuir para a rotatividade em leitos hospitalares, considerando que, muitas vezes, não faz sentido manter uma pessoa internada se há outras maneiras de acompanhá-la. Pesquisadores testaram esse monitoramento em pacientes pós-COVID e pós-alta de UTI, em todos os casos, com uso de wearables.
Para o professor Cristiano, essa é uma ideia ampliada para o termo “telemedicina” que não precisa se restringir à teleconsulta, podendo abranger o acompanhamento das condições de saúde rotineiramente. Se uma pessoa idosa de saúde vulnerável prefere estar em casa monitorada do que ficar internada, há uma grande possibilidade de hospitais, apoiados com essas tecnologias, conseguirem dar suporte a esta pessoa na transição para o ambiente doméstico. E, nesse caso, vale citar cenários ainda mais atravessados por IoT em que, além do uso de wearables, uma casa inteligente com câmeras e outros dispositivos possa ajudar a monitorar a saúde do paciente.
Enfim, a tecnologia blockchain permite que esses dados sejam compartilhados com privacidade. Ademais, a circulação confiável dessas informações não beneficia apenas pacientes, mas também alimentam municípios e estados para desenvolvimento de políticas de saúde. Por exemplo, uma prefeitura poderá ter uma visão mais assertiva sobre a saúde na cidade, monitorando onde há surto de doenças.
Os gestores de saúde não precisam saber exatamente sobre qual paciente é a informação, precisam apenas medir recorrências e incidências, especialmente por meio do georreferenciamento, a fim de direcionar melhor os investimentos em saúde pública. Nesse caso, entra a criptografia homomórfica, permitida pelo registro blockchain, para que a administração pública enxergue esses dados anonimizados. Se um wearable envia informações de alta temperatura, alta frequência cardíaca e baixa oxigenação, é possível, por meio da criptografia, acessar esses dados sem identificar a pessoa. Assim, os metadados podem servir para gestores medirem tendências epidemiológicas localizadas.
Adoção de blockchain
O que começou com possibilidades de aprimorar o Registro Pessoal de Saúde, em 2018, caminhou para aplicações super utilitárias de IoT. Sendo assim, há um amadurecimento do uso de blockchain e estamos em um momento de aplicações em negócios e setores diversos. “A área da saúde carece de mais experimentação e pesquisa. E, claro, não adianta a tecnologia ser promissora se ela não for reforçada por governos”, conclui o pesquisador.
Por isso, a adesão de blockchain pode ser complexa, porque envolve custos e legislações específicas. Ainda no caso da integração de dados entre diferentes hospitais, há dificuldades por parte dessas unidades, muitas vezes de gestão privada, em enxergar benefícios no compartilhamento de informações. Portanto, há sinais de que um dos caminhos talvez esteja em uma adoção governamental, a exemplo de outros países.
Sobre o entrevistado
Professor titular e pesquisador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos, Brasil). Na Unisinos, atua no Programa de Pós-Graduação em Computação Aplicada e dirige o SOFTWARELAB, Laboratório de Inovação em Software da Unisinos. É doutor e mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, Brasil). Em 2016, realizou um período sabático na Friedrich-Alexander-Universität Erlangen-Nürnberg (FAU, Alemanha), no Laboratório de Aprendizado de Máquina e Análise de Dados. Desde 2012, é pesquisador bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atua como professor no ensino superior desde 1997. É membro sênior da ACM, do IEEE, da Sociedade de Engenharia em Medicina e Biologia (EMBS), da Associação Internacional para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (IADIS) e da Sociedade Brasileira de Computação (SBC). Seus interesses de pesquisa incluem computação ubíqua, móvel e distribuída. Nos últimos anos, tem aplicado sua pesquisa à área da saúde.