A blockchain é amplamente reconhecida pela sua imutabilidade: uma vez registrado, o dado não se altera, não se apaga, não se corrige. Mas, e se disséssemos que essa característica pode, em alguns casos, ser um problema e que há maneiras de permitir edições controladas, seguras, legítimas? Foi exatamente isso que Ewerton Rodrigues Andrade, professor na Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e pesquisador no Sidia Instituto de Ciência e Tecnologia, explorou no seu doutorado sanduíche na Itália, juntamente com outros pesquisadores da Sapienza Università di Roma, numa pesquisa que desafia o que muitos consideram inviolável no universo blockchain.
Durante sua estadia no continente europeu, o professor Ewerton se deparou com um ambiente regulatório e social marcado pelo avanço da Lei Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR). Entre outras garantias, o regulamento prevê o chamado direito ao esquecimento, que assegura ao cidadão a prerrogativa de solicitar a exclusão de dados pessoais incorretos, desatualizados ou que não deveriam permanecer públicos por tempo indefinido. Em sistemas baseados em blockchain, contudo, essa prerrogativa legal esbarrava na rigidez da tecnologia, pois uma vez inserido, o dado não poderia ser alterado ou removido.
Além disso, outras situações reforçavam a necessidade de repensar a imutabilidade absoluta. Na área da saúde, por exemplo, erros em prontuários médicos, tais como diagnósticos equivocados que ficam registrados para sempre, poderiam gerar impactos permanentes na vida dos pacientes. No campo jurídico, havia também as exigências de remoção de conteúdos ilegais, como pornografia ou informações sensíveis, que em alguns países do Oriente Médio, por exemplo, poderiam até mesmo implicar em sanções criminais para quem armazenasse tais dados em aplicações baseadas em blockchain. Em todos esses casos, a impossibilidade de corrigir ou apagar registros não era apenas um desafio técnico, mas também um risco social e legal.
A proposta de uma blockchain editável surgiu desse impasse. Ao invés de aceitar a imutabilidade como valor absoluto, Ewerton e seus colegas investigaram formas de permitir alterações pontuais, em cenários muito específicos e sob condições rigorosas de consenso da rede. “Se a gente implementar as blockchains tradicionais, inviabilizamos o cumprimento de algumas leis, como o direito ao esquecimento”, explica Ewerton. “Nosso objetivo nunca foi substituir a blockchain imutável, mas pensar em cenários em que a reescrita seja necessária e justificável. Até porque é muito dispendioso computacionalmente”.
Tecnicamente, o modelo proposto não abria brechas para edições arbitrárias, pois a modificação só seria possível mediante mecanismos criptográficos robustos, chaves compartilhadas e a aprovação majoritária dos participantes da rede para recalcular o bloco com as edições propostas. “Não é uma edição arbitrária. É um processo complexo, que exige consenso e mantém a mesma segurança das blockchains tradicionais”, destaca ele.
Da rejeição ao reconhecimento
A ideia, porém, encontrou forte resistência inicial. Nas primeiras submissões a comunicações científicas, o trabalho foi recusado sob o argumento de que contrariava o cerne da tecnologia blockchain. Para muitos revisores, a simples hipótese de editar blocos soava como uma afronta a um dos fundamentos mais inquestionáveis da área. “Esse artigo foi negado várias vezes. Precisamos gastar muita energia na introdução e na justificativa, porque era algo muito disruptivo e a comunidade reagia com críticas pesadas”, lembra o pesquisador.
Depois de insistência e amadurecimento na argumentação, o artigo foi finalmente aceito e ganhou projeção. O impacto foi imediato. A pesquisa chamou atenção da mídia internacional, chegando a ser mencionada pelo New York Times e na agência de notícias Reuters, e despertou interesse de empresas como a Accenture, que chegou a registrar patentes relacionadas à tecnologia com outros co-autores do artigo. Desde então, o conceito de blockchain editável passou a integrar o repertório de discussões acadêmicas e empresariais, não como substituto da blockchain tradicional, mas como alternativa para contextos em que a inflexibilidade pode gerar mais problemas do que soluções. “A edição é uma exceção, não a regra. Mas em casos como registros médicos ou exigências legais, pode ser a diferença entre garantir direitos ou perpetuar injustiças”, resume Ewerton.
Pós-quantum: um futuro inevitável
A preocupação do professor Ewerton com a segurança vem desde a graduação em Sistemas de Informação. Com licenciatura em Matemática (UNIR), mestrado em Ciência da Computação no Instituto de Matemática e Estatística (USP) e doutorado em Engenharia de Computação (USP), ele se dedica há anos a investigar protocolos, funções criptográficas e algoritmos capazes de sustentar a segurança de sistemas digitais robustos. Essa experiência explica sua atenção especial para um tema que já mobiliza governos, empresas e pesquisadores em todo o mundo: o impacto da computação quântica sobre a segurança da informação.
Portanto, ele também traz reflexões sobre o horizonte da computação quântica e seu impacto sobre a segurança da blockchain. Se hoje os registros são considerados computacionalmente invioláveis, um computador quântico poderia alterar esse equilíbrio. “Com poder computacional adequado, seria possível forjar assinaturas digitais e quebrar protocolos que hoje sustentam as transações em blockchain”, alerta Ewerton.
Mas ele não vê nisso um fim inevitável para a tecnologia. “Já temos alternativas pós-quânticas em desenvolvimento, inclusive blockchains que usam algoritmos resistentes a esse tipo de ataque. O que é interessante é que algumas dessas soluções já se mostram até mais eficientes que as clássicas, fruto da melhoria da base matemática. É como trocar peças de um maquinário: quando a ameaça chegar, teremos ferramentas para manter a segurança”, explica.
Ele lembra que, em 2022, o NIST (instituto norte-americano que estabelece padrões técnicos adotados globalmente, uma espécie de “ABNT dos Estados Unidos”) concluiu uma grande competição internacional de padronização e selecionou algoritmos pós-quânticos para assinatura digital e criptografia de chaves. Isso significa que, aos poucos, essas soluções estão deixando de ser apenas experimentais para se tornar novos padrões globais de segurança.
O desafio, segundo Ewerton, não é técnico, mas de adoção de mercado. “Atualizar funções criptográficas é sempre delicado. Se não deu problema, ninguém mexe. Mas isso atrasa a migração para protocolos mais seguros.” Ele cita o exemplo do MD5, algoritmo de hash quebrado desde 2005, mas ainda usado em sistemas legados porque “funciona”.
Apesar dessa inércia, grandes empresas já começaram a agir. O Google, por exemplo, implementou certificados SSL com algoritmos pós-quânticos no Chrome, oferecendo soluções resistentes até a ataques quânticos. “Hoje, quem realmente se preocupa com segurança já utiliza pós-quântica. Mas para virar padrão de mercado, ainda vai levar tempo”, conclui.
Aplicações que fazem sentido
Se por um lado a criptografia quântica projeta os desafios do futuro, por outro, o pesquisador lembra que o presente já exige soluções urgentes para questões brasileiras. Para ele, pensar blockchain é também pensar em usos sociais e estratégicos. Ele vê grande potencial na aplicação da tecnologia em políticas públicas e em áreas sensíveis para o Brasil.
“Corrupção e desvio de recursos são problemas crônicos do país. A blockchain poderia ser uma ferramenta poderosa para auditoria e transparência, tornando fraudes muito mais difíceis de serem praticadas”, afirma. Outra frente é a Amazônia. “Temos essa joia no quintal, mas continuamos explorando de forma predatória. A tecnologia blockchain pode garantir rastreabilidade em dados genéticos e insumos da floresta, criando um modelo de valorização baseado em conhecimento e inovação, e não em destruição.”
Essa talvez seja a maior contribuição de Ewerton Andrade: mostrar que a blockchain não é apenas um artefato técnico, mas um campo de reflexão sobre como equilibrar imutabilidade e flexibilidade, segurança e justiça, tecnologia e sociedade.
Sobre o pesquisador
Atualmente, Ewerton Rodrigues Andrade é professor na Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e pesquisador no Sidia Instituto de Ciência e Tecnologia. Mas também já atuou como professor no Instituto Federal de Rondônia (IFRO) e realizou estágio de pós-doutorado na mesma instituição onde obteve o título de doutor, na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), sob a supervisão e orientação do Professor Dr. Marcos A. Simplicio Jr. Durante seu doutorado, realizou mobilidade acadêmica no Dipartimento di Informatica da Sapienza Università di Roma (la Sapienza), sob orientação do Professor Dr. Luigi Vincenzo Mancini. Obteve o título de mestre no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), sob a orientação do Professor Dr. Routo Terada. Seus interesses de pesquisa estão tipicamente relacionados à Segurança de Dados/Criptografia e suas aplicações (ou implicações).