Blockchain e o fator-chave: quando há (des)confiança, há oportunidade

Imagem: Shubham Dhage/Unplash

Blockchain já foi anunciada como solução para quase tudo: rastrear safras, agilizar a gestão de portos, garantir autenticidade de obras de arte e transformar cadeias logísticas globais. Mas, com o tempo, ficou claro que não basta usar blockchain porque é moderno ou disruptivo. É preciso que ele resolva um problema real.

Em entrevista ao Observatório Nacional de Blockchain, o professor Antônio “Guto” de Aragão Rocha, professor do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense, foi direto ao ponto:

“Blockchain só faz sentido quando você tem conflitos de interesse.”

Parece simples, mas essa afirmação é poderosa. Ela coloca a confiança (ou a falta dela) como o centro da decisão sobre o uso da tecnologia.

Quando confiar é o problema, a blockchain é a solução

Segundo o professor, a blockchain é ideal quando há pelo menos três atores desconfiando uns dos outros, como no caso clássico de contratos públicos. Ele cita o exemplo da gestão do transporte público em Niterói:

“Você tem a prefeitura, a empresa de ônibus e o cidadão. A prefeitura fiscaliza, mas seus fiscais são pessoas. Logo, passíveis de corrupção. A empresa desconfia da prefeitura e o cidadão não confia nem em um, nem em outro.”

Neste cenário, o uso de contratos inteligentes pode automatizar pagamentos, aplicar multas por atrasos e dar visibilidade ao cidadão sobre horários, rotas e cumprimento do serviço. Tudo registrado de forma imutável e auditável. “Você elimina o intermediário corruptível”, resume Guto.

ESG, rastreabilidade e valor agregado: do campo ao consumidor

Outro campo onde blockchain ganha força é o das cadeias produtivas éticas, cada vez mais exigidas por consumidores e regulamentações.

O professor exemplifica:

“Se você conseguir mostrar que a roupa foi costurada por uma pessoa com CPF identificado, que o algodão veio de uma fazenda sem trabalho escravo, isso agrega valor. O consumidor quer saber.”

Esse tipo de rastreabilidade pode ser aplicado a carnes, castanhas, roupas, cosméticos e muito mais. O valor não está só na procedência, mas na confiança de que a informação é verdadeira, porque está em blockchain.

Um desafio regulatório crítico é conciliar a imutabilidade da blockchain com o direito ao esquecimento garantido pela LGPD. No âmbito do Projeto Ilíada, o GT-Padlock, coordenado por ele, está criando um mecanismo de “machine unlearning”, que permite verificar o uso de dados em modelos de IA sem gravá-los diretamente na cadeia. Caso o usuário solicite remoção, o algoritmo “desaprende” apenas o que for necessário, mantendo a conformidade legal sem comprometer a confiança nos registros.

Mas e o custo? Nem toda manga merece um smart contract

Nem tudo, no entanto, vale o investimento. Há casos em que o custo de registrar cada dado em blockchain supera os benefícios. Guto comenta:

“Na logística, muita coisa morreu por conta disso. Rastrear uma manga pode não valer a pena. O produto é perecível, tem baixo valor agregado e as empresas não quiseram dividir dados por medo de revelar segredos comerciais.”

Por isso, segundo ele, é importante avaliar o contexto de cada aplicação. O professor sugere três ideias de questões a se fazer: 

  1. Há desconfiança real entre as partes?
  2. Existe necessidade de auditoria pública ou externa?
  3. O consumidor final valoriza (e paga por) essa transparência?

Se sim, blockchain pode ser o caminho. Se não, talvez existam soluções mais simples e viáveis.

O professor ressaltou o potencial das soluções de Layer 2 (segunda camada) para driblar custos elevados de transação. O GT-Padlock também está desenvolvendo APIs para integrar a Cartesi Machine à rede BeSu, permitindo que contratos inteligentes escritos em qualquer linguagem sejam executados de forma mais barata e escalável sem abrir mão da imutabilidade ou da auditabilidade da cadeia.

Blockchain como infraestrutura para confiança pública e privada

A partir da lógica do “conflito de interesses”, Guto ainda amplia a discussão para contratos de carbono, relações com agências reguladoras e até redes criadas de forma descentralizada, por produtores ou empresas:

“Você pode modelar blockchain como um tabelião digital. Ele valida o que foi acordado, de forma imutável e auditável, sem depender de um agente central.”

Isso pode ajudar a combater práticas de greenwashing, garantir a origem de produtos orgânicos, validar créditos de carbono reais (usando IA e imagens de satélite), entre outros exemplos em que a transparência é essencial para o negócio.

A pergunta que vale ouro

Se alguém pergunta: “Será que dá pra usar blockchain aqui?”, a resposta pode ser mais útil se a questão for outra:

“Existe desconfiança entre os atores envolvidos?”

Se a resposta for sim, e se houver necessidade de registrar algo que precisa ser público, auditável e inviolável, talvez blockchain seja a melhor solução. Se não, podem haver alternativas mais simples, mais baratas e igualmente eficazes.

A tecnologia é promissora, mas o que a torna poderosa é seu alinhamento com problemas reais, especialmente os que giram em torno da confiança.

Sobre o entrevistado 

Pós-doutor pela UMass-Amherst e doutor pela COPPE/UFRJ, Antonio “Guto” Rocha é professor do IC/UFF desde 2011. Em 2022, realizou um pós-doutorado empresarial na Rede Nacional de Ensino e Pesquisa. Tem trabalhos nas áreas de Redes de Computadores, Sistemas Distribuídos, Segurança em Sistemas Computacionais e Ciência de Dados, mais especificamente em escalabilidade de soluções de Blockchain e aplicação de soluções de Inteligência Artificial em problemas de Sistemas de Redes e Segurança. O pesquisador tem artigos em importantes conferências e periódicos internacionais, sendo alguns deles premiados, incluindo os de melhores artigos no ACM/CoNEXT 2009, SBRC 2007, WPerformance 2004, 2012 e 2014. Já foi também agraciado com o prêmio Jovem Cientista do Estado do Rio de Janeiro e com a Bolsa de Produtividade do CNPq. Atualmente coordena, dentre outros, o projeto Catálogo de Dados de Redes fomentado pela RNP, além de outros projetos de P&D junto a Cartesi, Dell, TIM e Globo. Atualmente é ainda coordenador do CT-Mon (Comitê Técnico de Monitoramento da RNP).