Blockchain como estrutura de confiança: redes sem fio, mecanismos de incentivo e  identidade autossoberana

Blockchain como estrutura de confiança
Imagem: Alina Grubnyak/Unsplash

Imagine três cenários de comunicação em rede sem fio: socorristas coordenando o resgate de vítimas durante um desastre natural em um território remoto; sensores espalhados para detectar temperatura, umidade ou poluição do ar em uma área de preservação ambiental; e a infraestrutura de uma cidade inteligente (conectando parquímetros, catracas de metrô e pontos de Wi-Fi público). Imaginou? Agora pense que as redes de conexão desses nós precisam ser de alta confiabilidade para que haja encaminhamento de dados a vários destinatários simultaneamente. Portanto, a confiança é uma característica-chave. 

Problemas como ataques cibernéticos, falhas físicas, interferência de sinais e comportamento egoísta ou não cooperativo (free-riding) afetam a confiança em Redes Ad Hoc Móveis (MANETs), exemplificadas anteriormente. Por isso, a blockchain começou a ser usada nesses casos, especialmente, para implantar mecanismos de incentivo à cooperação no encaminhamento de dados. A tecnologia elimina ou reduz a necessidade de módulos de hardware à prova de adulteração ou serviços de terceiros confiáveis, justamente por conta do caráter descentralizado. 

Em entrevista ao Observatório Nacional de Blockchain, a professora Carla Merkle Westphall, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Computação (PPGCC) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o pesquisador e administrador de redes Caciano dos Santos Machado, do Centro de Processamento de Dados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), falaram sobre as aplicações de blockchain para garantir a confiança entre entidades nas redes. 

Além disso, os pesquisadores detalharam como a evolução do campo de sistemas distribuídos exigiu fôlego de pesquisa em gerenciamento de identidades, computação em nuvem, Internet das Coisas e, portanto, uma necessidade de investigação sobre protocolos de segurança e autenticação. 

Em 2020, a professora Carla e sua equipe começaram a olhar para a blockchain como estrutura de confiança, podendo ser aplicada em outros ambientes que não só as finanças. Nessa mesma época, durante o doutorado, Caciano mergulhou nos estudos sobre o uso de estrutura de Redes Ad Hoc Móveis (e Redes Mesh) para viabilizar o pagamento a usuários por fazerem encaminhamento dos pacotes de dados. Ou seja, o pesquisador se dedicou a compreender algoritmos de roteamento e caraterística de redes em que é possível pagar aos participantes com criptomoedas, os chamados mecanismos de incentivo. 

Mecanismos de incentivo

Existem redes comunitárias – caracterizadas como Redes Ad Hoc Móveis (MANETs) – que são soluções para localidades remotas com baixa densidade populacional e pouco interesse comercial dos operadores em levar um serviço de qualidade e barato. Nesse caso, as próprias comunidades conseguem criar infraestruturas autônomas com recursos internos, normalmente com tecnologia de rádio. 

Caciano conta que, à época do doutorado, se interessou pelas redes comunitárias e chegou a instalar pontos de acesso Wi-Fi em uma aldeia em Palhoça, na Região Metropolitana de Florianópolis. Descobriu, também, uma rede comunitária indígena em Oaxaca, no México, que implantou telefonia própria e conseguiu depois concessão do governo para operar legalmente. O trabalho de Caciano com redes comunitárias foi interrompido pela pandemia de Covid-19, que impossibilitou o contato com comunidades remotas, mas rendeu insights para continuação das pesquisas com Redes Ad Hoc Móveis. 

Um desses insights era resolver um problema fundamental desse tipo de rede: a questão da sustentabilidade e a necessidade de incentivar os membros para que atuem ativamente promovendo a operação. “Precisam ser mantidos os equipamentos e os nós que vão fazer o roteamento. E aí surgiu essa ideia de pesquisar os mecanismos de incentivo”, explica o pesquisador.

Então, ele descobriu mecanismos de incentivo modelados em Teoria dos Jogos, alguns baseados na reputação dos nós participantes da rede. Mas os que interessaram mais à equipe de pesquisa, naquele momento, foram os mecanismos baseados em crédito. “ Tinha uma moeda virtual ou até mesmo uma moeda com valor real embutida no protocolo, sendo usada para dar créditos a quem contribuísse com a operação da rede”, detalha Caciano. 

A partir daí, pensaram em incluir a tecnologia blockchain nas pesquisas – afinal, com ela é possível trabalhar com moedas virtuais de modo automático, mais elaborado, seguro e eficiente. O estudo revelou várias ferramentas e softwares que fazem esse tipo de solução. Em seguida, apareceu o problema de garantir as provas de encaminhamento dos pacotes de dados por cada nó da rede: como é possível confirmar que determinado roteador está encaminhando os pacotes de forma correta? Os pesquisadores, então, criaram o sistema HARPIA (Hop-by-hop Accounting and Rewards for Packet dIspAtching) que tem como finalidade usar uma blockchain para as garantias de prova de encaminhamento.

Blockchain para tudo?

Nas pesquisas sobre redes da equipe da professora Carla Merkle Westphall, o uso de blockchain ficou justificado e ratificado. Mas a pesquisadora tem se questionado sobre um hype:

“A tecnologia de blockchain explodiu e todo mundo quer usar em tudo, mesmo que não precise. A questão da confiança produzida pelos mecanismos criptográficos é algo que fez da blockchain uma fonte de recurso para fazer descentralização segura em várias áreas como IoT, sistemas ciberfísicos, auditoria e comunicação sem fio, que é o caso do trabalho do Caciano”.

De acordo com Carla, a quantidade de aplicações é muito grande, porém é preciso planejar usos de blockchains públicas versus privadas, o que não é um assunto pacífico na área. No caso do sistema HARPIA, por exemplo, foi usada uma blockchain privada (Ethereum), mesmo os pesquisadores achando que, idealmente, o sistema deveria estar numa blockchain pública. Já uma outra aplicação desenvolvida por pesquisadores da equipe de Carla usa blockchain privada com a certeza de que esta é a melhor opção. “Um doutorando, sob minha orientação, elaborou uma cadeia de custódia forense inspirado em um ambiente de Tribunal de Justiça aproveitando características da blockchain privada”.

A professora Carla pondera vantagens e desvantagens – desde escalabilidade à interoperabilidade – que a levam a pensar na necessidade de melhorias da tecnologia blockchain, especialmente no quesito segurança. “Embora ela forneça esse ambiente de confiança, encadeamento de blocos e consenso, ela também tem pontos fracos que necessitam de pesquisa. E aí a gente tenta colaborar nessa parte. Precisamos desenvolver aplicações, enfrentar esses desafios de ajustar a tecnologia para melhorar”.

Identidades autossoberanas

Nesse sentido de desenvolver aplicações, o trabalho atual da pesquisadora é sobre redes de nova geração, unindo IoT, ambientes de computação em nuvem e, mais recentemente, identidades autossoberanas. Carla coordena o GT-Swarm (Self-sovereign Wi-Fi Authentication Roaming), dentro do Projeto Ilíada, que é uma parceria entre a RNP e o CPQD sob coordenação da Softex. O objetivo do grupo é construir um serviço de autenticação com identidades autossoberanas para roaming WiFi, a exemplo da “eduroam”. 

A  “eduroam” é uma rede global de acesso Wi-Fi que conecta estudantes, pesquisadores e funcionários de instituições de ensino e pesquisa. O serviço, operado pela RNP, permite que seus usuários se conectem à internet em qualquer lugar que possua pontos de acesso do “eduroam”, sendo a autenticação realizada com as credenciais da instituição de origem do usuário. A mudança proposta pelo GT-Swarm é permitir a autenticação na “eduroam” e em outras redes federadas com identificadores descentralizados (IDD).

Sobre os pesquisadores

Carla Merkle Westphall é Doutora em Engenharia Elétrica na área de Segurança de Sistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre e graduada em Ciências da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Participou de vários projetos de pesquisa na área de segurança de sistemas. O projeto atual envolve segurança que integra blockchain, identidades autossoberanas e redes sem fio. Atua como professora do departamento de Informática e Estatística (INE) da UFSC. É professora e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Computação (PPGCC) da UFSC. Sua pesquisa envolve segurança em redes de nova geração, radiação de fundo da Internet, blockchain, gerenciamento de identidades, identidades autossoberanas e segurança de aplicações.

Caciano Machado é doutor em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre e bacharel em Ciência da Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua na área de redes de computadores no Centro de Processamento de Dados da UFRGS. Possui experiência em docência e em pesquisa e desenvolvimento nas áreas de sistemas distribuídos, computação de alto desempenho e segurança da informação. Sua pesquisa mais recente concentra-se na aplicação de tecnologias de blockchain a protocolos de redes de computadores.