Biofábrica de chocolate: rastreabilidade de cadeias produtivas amazônicas

Imagem Sara Gomes na Unsplash

A utilidade de blockchain na rastreabilidade de cadeias produtivas faz desta aplicação uma das mais difundidas no ecossistema brasileiro. Das 541 iniciativas mapeadas, até julho de 2025, pelo Observatório Nacional de Blockchain, 17,3% são ligadas às atividades de rastreamento, ficando atrás apenas de categorias como finanças e ativos digitais. A possibilidade de garantia de procedência, transparência, segurança, imutabilidade e escalabilidade é atrativa para diferentes fluxos de produção como carne bovina, açúcar, vinho, café, vacinas, algodão, entre tantos outros. 

Entre as frentes de rastreabilidade que se destacam estão aquelas voltadas à valorização de produtos brasileiros, especialmente da Amazônia. O principal foco de iniciativas para a região é comprovar a procedência e garantir responsabilidade socioambiental na extração de riquezas naturais dessas terras. Tereza Cristina Melo de Brito Carvalho é professora associada da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP) e professora visitante da Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e está envolvida com pesquisa e desenvolvimento na região amazônica. Em entrevista ao Observatório, ela narrou casos de uso de blockchain frisando a importância da tecnologia na garantia de sustentabilidade.  

Em 2019, a professora ingressou no projeto Amazônia 4.0, cujo objetivo era desenvolver tecnologias para viabilizar a produção econômica na floresta com proteção socioambiental. Uma das linhas do projeto era o uso de blockchain na rastreabilidade de cadeias produtivas baseadas em frutos nativos da Amazônia, a exemplo do cacau, fruto com o qual Tereza Carvalho e sua equipe de pesquisa se envolveram a partir dali. 

“Imagine um ribeirinho que tem uma árvore de cacau para colheita. Este cacau vai dar o ganha pão no final do dia, então, o ribeirinho vai ter interesse em manter esta árvore. O que eu quero dizer com este exemplo é o seguinte: usar o ganho econômico e a bioeconomia para despertar na população local a vontade de proteger a Amazônia. Essa é a ideia  por trás do projeto. Por isso, trabalhamos com diversas cadeias como a castanha do Pará – chamada de castanha do Brasil, o cacau, o açaí, o cupuaçu e outras. Mas a que está dando os primeiros frutos de pesquisa é a cadeia do cacau”, explica Tereza.

Da semente ao chocolate

Segundo dados da Embrapa, a Região Norte é a maior produtora de cacau  do Brasil. O Pará é o estado líder, com um rendimento superior a 50% do total movimentado no país. Ainda conforme a Embrapa, o cultivo é feito majoritariamente por agricultores familiares em sistemas agroflorestais. 

No projeto Amazônia 4.0, a tecnologia blockchain é usada para registrar todas as operações da cadeia de produção de chocolate para que, ao final do fluxo, o consumidor possa consultar – por meio de um QR Code – os dados do chocolate que está adquirindo. Tereza Carvalho explica que o processo é chamado rastreabilidade indoor, ocorrendo desde a fermentação do cacau até os processos de produção do chocolate. 

Os trabalhos começaram na comunidade indígena Surucuá, localizada na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no Oeste do Pará. Foram instalados maquinários de extração e beneficiamento do cacau, além de softwares que automatizam os registros em blockchain, garantindo a rastreabilidade. Além disso, a comunidade local foi treinada para executar esse fluxo de forma autônoma. 

“De uma comunidade fomos passando o conhecimento para outras. Chegamos a uma comunidade de mulheres perto do Rio Tapajós e, posteriormente, uma terceira ao norte do Pará. A ideia com isso é criar uma biofábrica dentro da Amazônia para, de fato, produzir chocolate. Será uma biofábrica de uso compartilhado para diversas comunidades terem sua própria produção de um chocolate diferenciado. Daí, a blockchain é usada para provar a origem desse produto”, afirma Tereza. 

A pesquisadora detalha a importância de um registro confiável para matéria-prima e da excelência na produção. “Quando falamos que um chocolate é 90% significa que são 90% de cacau e 10% é o resto, podendo ser leite, amêndoa ou qualquer outra coisa. Então, essas comunidades podem criar diversas receitas”.

No sistema criado pelos pesquisadores para a biofábrica, é possível registrar as receitas e programar as máquinas para garantir a reprodutibilidade da receita quantas vezes forem necessárias. Assim, são inseridos detalhes como o tempo e temperatura do processo de fermentação e de torra da amêndoa de cacau, além do tempo de moagem. O que os cientistas querem é trocar conhecimento com os produtores dando a possibilidade de execução de receitas com escalabilidade. 

“O primeiro objetivo deste projeto é incentivar a bioeconomia da Amazônia, de modo que a população tenha interesse em preservar a floresta, considerando que um fruto da floresta sustenta a economia local. Um grande resultado deste trabalho é o uso de blockchain na cadeia da biofábrica”, pontua Tereza. Segundo ela, existe um problema no mercado que é usar o cacau de outra região, fazer o chocolate na Amazônia e dizer que é feito de cacau amazônico, tentando forçar um diferencial competitivo.

Chocolate como ativo digital

Com a inserção da tecnologia blockchain no processo, o chocolate produzido se torna um ativo digital, afinal de contas, a rastreabilidade gera uma representação virtual de um produto físico, neste caso, o cacau que vira chocolate.  “É isso que chamamos de processo de tokenização. As comunidades produtoras não entendem isso tecnicamente e não há necessidade. Para eles, basta compreender que o chocolate produzido se torna um ativo digital”. 

De acordo com a pesquisadora, a informação central para as comunidades envolvidas no processo é que a tecnologia blockchain permite que seja  auditado  se  esse chocolate é “made in Amazônia”. Aliás, essa certificação fica tangível quando o produtor imprime um QR Code para o chocolate, e qualquer pessoa pode escanear e obter informações sobre  toda a cadeia. 

Biobank

O uso de blockchain vai além da rastreabilidade nos projetos da Amazônia. Está em desenvolvimento, também, um serviço para uso de dados das espécies amazônicas com pagamento em criptomoeda, a partir da criação de um biobank. A professora Tereza Carvalho explica:

“Produtores da região poderão coletar DNA de espécies locais e colocar em um banco de dados. Como essa coleta é complexa, existem vários players do mercado e parceiros que vão trabalhar no tratamento desse DNA.”

No fluxo das cadeias produtivas amazônicas são coletadas e processadas qualidades diferentes de grãos, frutos e outras matérias-primas. A ideia é que os dados dessa diversidade estejam disponíveis para uma consulta remunerada. “Vamos supor que um fabricante de medicamentos deseja fazer um produto usando alguma espécie da região. Então, ele precisa de um estudo completo de sequenciamento de DNA. Ao invés de mandar uma equipe para a Amazônia, este fabricante obtém os dados do biobank e faz um pagamento com uma moeda própria da Amazônia”, detalha a professora.

Esse modelo visa gerar um ganho em cadeia, dividido entre quem coletou, processou e compartilhou equipamento para a coleta do DNA. Já existe um protótipo deste projeto funcionando na USP, sendo a ideia agora transferir a tecnologia guardando os devidos cuidados éticos e legais que envolvem a coleta de dados genéticos. 

Sobre a pesquisadora

Tereza Cristina Carvalho é professora associada da Escola Politécnica – Universidade de São Paulo (USP) e professora visitante na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. É fundadora e coordenadora geral do LASSU (Laboratório de Sustentabilidade em TI), laboratório de pesquisa e ensino do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais. É fundadora e coordenadora do CEDIR-USP (Centro de Descarte e Reuso de Resíduos de Informática) de 2009-presente. Foi assessora de TI da USP no período de 2010-2013 e diretora geral do CCE-USP (Centro de Computação Eletrônica) no período de 2006-2010. É Sloan Fellow 2002 pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology). Recebeu diversos prêmios referentes à Inovação Tecnológica e Sustentabilidade: Prêmio FECOMERCIO de Sustentabilidade (2013 e 2015), Inovação ARede (2013), Prêmio de Sustentabilidade nas categorias Tecnologia, Ambiente e Social (2013), Prêmio Mário Covas em Inovação do Governo do Estado de São Paulo (2008, 2009 e 2010) e Iniciativa Verde da Info Exame (2010). Hoje, coordena diversos projetos de pesquisa e desenvolvimento para os setores privado e público em Cadeias produtivas da Amazônia, Computação Verde, Eficiência Energética em TI, Tratamento de Resíduos Eletroeletrônicos e Internet do Futuro. Ela tem publicado diferentes livros e artigos científicos e tecnológicos em periódicos e conferências nacionais e internacionais.