Do hype à governança da informação: como a blockchain está redefinindo a confiança contábil

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A última década foi marcada por uma mudança de perspectiva em relação à blockchain: o entusiasmo inicial e seus usos amplificados deram lugar a uma análise mais técnica e seletiva.  O debate sobre custo-benefício tornou-se critério básico, com questões como: Qual informação realmente precisa de imutabilidade? Em quais processos a descentralização traz ganhos reais? Onde a tecnologia é mais cara do que útil?

Em entrevista ao Observatório Nacional de Blockchain, Fernanda da Silva Momo, professora adjunta do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), avalia que o mercado superou o deslumbramento inicial para entrar em uma fase de maturidade estratégica. Segundo a pesquisadora, a tecnologia exige uma reestruturação profunda na forma como pensamos a gestão de dados.


“A tecnologia é naturalmente muito sedutora quando chega. Houve um período em que todo mundo dizia que, se você não estivesse usando blockchain, ficaria para trás. Mas isso gerou muitos usos que não faziam sentido. Agora estamos numa fase mais madura, em que precisamos perguntar: blockchain para quê? Qual problema ela realmente resolve? Não adianta manter um banco de dados inteiro na blockchain se isso não traz benefícios claros”, avalia.


Segundo a professora, para que a tecnologia ganhe escala, é necessário repensar processos, fluxos decisórios e estruturas hierárquicas, já que modelos tradicionais e centralizados muitas vezes colidem com a lógica distribuída das redes.


“Estamos engatinhando quando falamos de organizações totalmente descentralizadas. Os modelos de negócio ainda são muito tradicionais, assim como as estruturas de gestão. Não vejo empresas adotando DAOs [Decentralized Autonomous Organization ou Organização Autônoma Descentralizada] de forma plena no curto prazo, mas vejo possibilidades em iniciativas específicas, principalmente em auditoria e processos informacionais que fazem sentido ser descentralizados”, comenta.

Da teoria à prática: onde a confiança custa caro


Fernanda começou a estudar blockchain em 2017, momento em que a área de gestão ainda olhava timidamente para a tecnologia. Em seu doutorado e nas pesquisas subsequentes desenvolvidas na UFRGS, ela demonstrou que a blockchain não eliminava os custos de transação, como era preconizado na época por alguns autores, mas transforma a natureza desses custos e os reduz em vários cenários.


Esse contraste entre potencial e limites torna-se evidente quando observamos casos reais de aplicação.  No agronegócio, um projeto desenvolvido com a IBM permitiu rastrear a qualidade dos grãos ao longo de toda a cadeia logística, monitorando umidade, preservação e impacto no preço. Em outra frente, iniciativas sociais passaram a utilizar contratos inteligentes para registrar repasses, execuções e comprovações de forma automatizada, reduzindo riscos de desvio, trazendo clareza ao fluxo de recursos e fortalecendo a governança. 

Já no setor financeiro, grandes bancos têm adotado blockchain para processos críticos de autorização e outorga, reduzindo fluxos que antes demoravam dias para poucos minutos, um avanço expressivo para auditorias, compliance e controle interno, que reforça o potencial da tecnologia em operações de alta sensibilidade e alto volume.

“Partida tripla” e oportunidades para uso da blockchain


Especificamente em relação à área contábil, a pesquisadora destaca que já há estudos que mencionam a  “partida tripla” da contabilidade, com a blockchain atuando como uma terceira camada validadora em evolução ao método das partidas dobradas, que é o clássico “débito e crédito” que sustenta a contabilidade mundial. 


Imagine um cenário onde, além dos registros internos de quem compra e de quem vende, existe um registro imutável, compartilhado e validado pela tecnologia. Isso muda o jogo. Em vez de reconciliações intermináveis e auditorias baseadas em amostragem posterior, passamos a ter validação quase em tempo real, onde a confiança não é depositada apenas na contraparte, mas garantida pelo sistema.


Outro ponto de destaque é o posicionamento privilegiado do Brasil nesse ecossistema. Ao contrário de muitas economias desenvolvidas que ainda engatinham em digitalização bancária, o Brasil possui um sistema financeiro tecnologicamente avançado, fruto de décadas de investimento em controle e automação. Essa robustez do nosso setor bancário cria um terreno fértil para inovações e a tokenização da economia. As instituições financeiras brasileiras estão naturalmente mais preparadas para integrar a blockchain em suas infraestruturas de back-office e auditoria.

Para Fernanda Momo, o futuro da blockchain não será marcado por rupturas abruptas, mas por uma consolidação gradual voltada à transparência, especialmente em pautas de ESG. A capacidade de rastrear a origem de um ativo, verificar a integridade de uma informação contábil ou comprovar o destino de um recurso público torna a tecnologia uma aliada em um mercado que exige menos promessa e mais evidência. Assim, a blockchain está deixando de ser promessa futurista e se tornando parte silenciosa, mas estrutural, das infraestruturas de informação.

Sobre a pesquisadora

Fernanda Momo é Bacharela em Ciências Contábeis, Mestra e Doutora em Administração, na área de Gestão de Sistemas e Tecnologia da Informação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, é Professora Adjunta do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Controladoria e Contabilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem experiência docente, de pesquisa e extensão nas áreas de gestão e contabilidade, atuando nas temáticas de Finanças, Sistemas de Informação, Contabilidade Gerencial, Data Analytics. É também pesquisadora institucional, desenvolvendo projetos de consultoria em parceria entre a UFRGS e outras instituições.